MOHSEN EMADI: “O QUE ME AJUDA A SOBREVIVER É A POESIA DE CADA PAÍS
POR ONDE TENHO PASSADO”. Entrevista a Cláudio Aguiar
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Mohsen
Emadi (Irã, 1976), publicou, entre outros, os livros de poesia A flor
das linhas (Lola Editorial, 2003), As leis da gravidade
(Oliphant, 2011) e O visível ar, legível como a morte
(Oliphant, 2012), todos editados em Espanha. Em 2007 foi publicado no Irã
o livro de poesia Não falar de seus olhos (Ghoo Publishing).
Publicou, ainda, traduções de obras de Vladimir Holan, Nichita Stanescu,
Jiri Orten, Antonio Gamoneda, Pizarnik, Juan Gelman, Cezar Vallejo, João
Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade etc. Em 2007 fundou a Antologia Mundial de Poesia Persa, da qual
figura como editor responsável. Deixou
o Irã em 2009 e passou a viver em vários países europeus. Atualmente está
vivendo na cidade do México (DF), onde trabalha na elaboração de dois
livros de poesia e em documentário poético sobre o exílio de Luis Cernuda.
Em 2010 recebeu a bolsa de estudos “Finnish Literature Exchange, Fili”
para sua antologia de poesia finlandesa. No mesmo ano ganhou o Prêmio
Internacional de Poesia Medo (Espanha). Em 2011 conquistou a Bolsa
Internacional Antonio Machado de Espanha. Cláudio Aguiar - Para
começar, quem é Mohsen Emadi? Mohsen Emadi – Saber quem eu sou é muito dificil.
Descobrir-me é como encontrar a morte. Se, por um lado, a todo momento
estou construindo eu mesmo, por outro, com toda minha experiência apenas
construo quem eu sou. Esse é um processo de contaminação enfermiça… O
que sou e faço, respondendo diretamente à sua indagação, é encarar o
essencial da vida. Isso pode ser feito por meio da experiência da minha
infância, ou por intermédio de meus textos, isto é, o visível e o
invisível, o que vemos e o que nunca falaremos. Tudo isso se enraiza em
meu corpo e por certo, eu não sou mais do que meu próprio espírito. Nesse
sentido, eu sou um ser enfermiço e também eterno. CA – Seu nascimento e
formação inicial se deram numa cidade grande ou numa vila do interior de
costumes rurais?
ME – Eu nasci no norte de Irã, numa vila a apenas 15 km do
mar Cáspio, praticamente dentro de um bosque. A minha formação se deu ao
lado da família, formada por camponeses cultivadores de arroz e de outros
produtos agrícolas e também caçadores. Parte de meus familiares também era
integrada por viajantes do comércio com outras vilas próximas.
CA – Como e quando
surgiu seu interesse pela poesia ou, noutras palavras, a manifestação da
sensibilidade pelo artístico? ME – Penso que para responder a essa pergunta o melhor seria
falar sobre minha avó, uma mulher ativa, sempre a lutar na vila por causas
nobres, a exemplo do direito das mulheres. Ela bailava, cantava e vestia
roupas encantadoras. Era uma das poucas mulheres do lugar que escrevia
poesia e, ademais, trabalhava no campo. Sua existência e suas canções
folclóricas, tiveram forte influência na minha formação. Por causa dela,
desde os 6 anos, comecei a esvrever poesia desde. Era tempo de guerra e,
naquela época, poesia era uma forma de viver e não só de expressar e de
sentir. Daí que a única maneira de senti-la era por meio do canto, da
música. O Irã tem longa
tradição poética. Todas as pessoas, de etodos os niveis sociais, mantêm
forte contato com a poesia. Agora, o que estou a chamar de poesia não é,
evidentemente, o que eles praticam como poesia. Eles têm uma maneira
especial de expressar a litetatura. A literatura persa. Assim, a forma
poética que eu adoto, como escritor, é outra forma de expressão que me
custou muitos anos de aprendizado. CA – Você disse que em
Irã se respira e se transpira poesia. Isso é muito curioso. Creio que,
talvez por esse caráter tão marcante da vida iraniana, a poesia está
presente inclusive na celebração das estações do ano, como a Primavera,
chamada de “noruz”, quando se comemora o primeiro dia do ano,
acontecimento que anuncia a
chegada das flores, do que há de mais belo na natureza.
ME – Quase todos os aspectos de nossas tradições culturais
têm algo que ver com a poesia. Noruz para nós significa
renascimento de toda a natureza. Isso ocorre não apenas no Irã, mas em
outros países vizinhos, como a Albânia, Turquia, Afeganistão etc., onde a
primavera tem esse significado. Na noite em que começa noruz, quer dizer, a primavera,
toda a gente se reúne para dizer ou ler poesia, principalmente as obras de
Hafiz... CA – Em que época viveu Hafiz, poeta símbolo dessa
tradição? ME - Na época
medieval. Sua poesia existe em toda casa iraniana. Temos uma palavra para
dizer o que isso significa, a qual pode ser traduzida como sendo “linguagem da ausência”, expressão
que também deve ser traduzida como “decifrar nosso futuro”. CA – O sentido dessa
expressão talvez possa lembrar o nosso termo “saudade”, aquilo que os
espanhóis, numa tentative de aproximação, chamam de “nostalgia”.
ME – Eu penso que saudade e nostalgia são termos diferentes,
porque, como dizia meu amigo Eduardo Milán, saudade é saudade de si mesmo,
enquanto que nostalgia é
saudade do outro ou de algo. CA – Bem, depois de
atingir os 30 anos de idade, você começou a publicar e a difundir uma obra
poética, inclusive, fora do Irã. Terá sido esse labor poético a causa
fundamental de seu exílio forçado a partir de 2009? ME – É bastante difícil responder a essa pergunta. Nós temos
sempre a possibilidade de eleger o caminho a seguir de acordo com a força
interior que nos anima. Chega um detrminado ponto em que não se pode mais
aceitar essa imposição, essa hegemonia de poder, essa opressão ditatorial.
Então, decidimos ser impossível suportar ou negociar com a ditadura. É
certo que desde a minha adolescência e juventude, quando comecei a
escrever e a publicar, sempre tive problemas com autoridades do governo,
sobretudo por causa das mudanças introduzidas em minha poesia. Recordo que
no momento em que abandonei a maneira tradicional de escrever poesia e
adotei outras formas mais modernas, todos os festivais regionais de meu
país recusavam minha participação. Muitos sequer queriam falar ou conviver
regularmente comigo. Poesia moderna, em termos do que entendiam as
autoridades iranianas, especialmente no que diz respeito à república
islâmica, significava estar de acordo ou subordinado ao pensamento atual
do sistema governamental do Irã. Isso, porém, não tem nada a ver com certa
tradição religiosa. A rigor, eu sofri esse tipo de reproche desde minha
adolescência. A partir de então eu comecei a ver e a conviver com
proibições. Uma dessas proibições, por exemplo, foi o culto ou apoio da
poesia mundial, ou seja, a poesia produzida fora de Irã. A verdade é que
lá se vive submetido a duas cadeias: uma, de definição de si mesmo e,
outra, de definição por parte da ditadura. Esta impõe uma opressão de fora
para dentro, enquanto a aquela se transforma num cárcere
interior. CA – A expressão
“cárcere interior” lembra Santa Teresa Jesus, mas, no seu caso, é algo bem
diferente.
ME – Exatamente. Esse cárcere interior vivido pelos
iranianos, eu vivi e suportei enquanto era mais jovem. É pensar em algo
que começa e acaba no Irã. É uma forma horrível de nacionalismo que afeta
a livre produção poética. Isso significa que temos de começar a lutar
dentro de nós mesmos e tentar mudar o sentimento e as ideias dos nossos
leitores. Significa uma luta diferente, séria, travada numa perspectiva de
ação exercida por um soldado cultural. Assim, conciliar e negociar com a
ditadura é algo impossível. Quanado passei dois meses a lutar pelas ruas,
depois do golpe de Aberdjanezat, senti, por um lado, que não podia
publicar o que escrevia e, por outro, do ponto de vista pessoal, eu passei
a corer risco de vida. Ademais, se eu permanecesse em Irã, atuando como
soldado cultural, terminaria preso e recolhido a um cárcere. Ou, então,
teria que me calar e voltar à minha vila e passar a viver como os camponeses dali. Isso
seria muito bonito, porém, significava aceitar a morte do escritor que
sou. Por tudo isso, decidi deixar o Irã e sobreviver como escritor. Disse
a amigos que se eles ficassem ali, dentro de seis meses estariam presos.
Muitos decidiram ficar, outros resolveram abandonar o país. Resultado: uma
geração de escritores deixou o Irã. Não somente escritores, mas, também,
engenheiros, trabalhadores e outros profissionais liberais de diferentes
especialidades. Agora mesmo vivem cerca de 6 milhões de iranianos no
exílio. São mais de 8% da população. Por que essa gente abandona sua
terra, um país rico com bastante cultura, e prefere viver no estrangeiro
uma vida difícil? Está claro que é porque não têm a menor possibilidade de
viver sob o império de uma ditadura. CA – Nesse elevado
percentual é possível incluir também aqueles que abandonam o Irã motivados
por questões de natureza econômica, caracterizando, portanto, um processo
normal de emigração? ME - Eu digo que
inclusive a expatriação motivada por questão econômica, tem muito a ver
com problemas políticos. Há casos (e eu conheço vários) de pessoas que
vivem bem situados em termos de emprego – professores universitários,
executivos e profissionais liberais – que preferiram abandonar o Irã e
seus empregos a ter de viver ali submetidos às opressões do regime
ditatorial. Isso ocorre apesar do horrível nacionalismo iraniano. Para
mim, nos dias atuais, todo aquele que deixa o Irã sempre age motivado por
alguma dimensão política. CA – Como avalia a sua
vida de escritor exilado e até que ponto viver em diferentes países
europeus, antes de fixar-se no México, na Casa de Refúgio, concorreu para
moldá-lo como um expatriado? ME – Significou uma experiência extremamente difícil e, ao mesmo
tempo, também triste. Com o tempo aprendemos que não é possível nos querda
somente em um lugar a chorar, mas, também, precisamos chorar e chorar e
reagir... Não podemos ficar entregues ao abandono. O que aconteceu comigo
foi que ao deixar o Irã fui para a Finlândia… CA – Um país bastante
exótico, gelado, bem diferente do Irã… ME - Claro. Ali
se vive nove meses de excessivo frio com -40°,
algo impossível de imaginar. Depois, os finlandeses são diferentes, têm
outra percepção sobre a arte, sobre a literatura e a cultura em geral. Uma
vez ali, a gente se sente assim como um peixe fora d’água. No começo eu
vivi ali num claro vazio. Apesar disso, comecei a construir o meu exílio
de diferentes maneiras. Foi uma experiência tão extrema que, depois de
certo tempo, conclui que, se eu conseguira sobreviver em Finlândia,
conseguiria sobreviver em qualquer parte do mundo. No entanto, apesar da
dura ausência dos que me eram mais caros no Irã – minha avó, minha mãe,
meu pai e demais parentes – tive a sorte de conhecer amigos e poetas de
valor. Após três meses já tinha encontrado o que fazer. Apesar disso,
estar desconectado com minhas fronteiras e, por outro lado, sob o império
de uma estranha natureza, cresceu em mim uma solidão enorme. Uma das
saídas foi ter enfrentado o desafio de conhecer de perto a cultura
finlandesa. A porta se abriu por meio da tradução da poesia finlandesa ao
persa. Comecei a traduzir poetas e ganhei o “Finnish Literature Exchange,
Fili”, em 2010, prêmio que me proporcionou a tradução ao persa de 65
poetas finlandeses. Eu
trabalhava de manhã a noite. Para tanto, contei com a ajuda de amigos, a exemplo
de um que é proprietário de uma ilha particular, lugar tão aprazivel que
tinha sauna ao lado de um lago gelado! Essa natureza tão forte que passei
a contemplar, de certa maneira, começou a influir em minha poesia. Mudança
não só em relação à saudade de meu país, mas à necessidade de manifestar
solidariedade a muitos exilados que também vivem numa situação de eterna
saudade, rendidos ao sofrimento e à dor. Esse sentimento vive com nosso
povo e viaja conosco para todos os lugares. Fazia muito tempo qu eu não
escutava persa. Quando passei a traduzir poesia à minha lingua nativa,
comecei a ouvir persa em Finlândia, em Praga, em Espanha, no México e até
aqui no Brasil. Estou
lendo (traduzindo) poesias em idiomas que não são a minha lingua maternal,
porém trabalho duro em persa ao traduzi-las. Uma motivação
para fazer esse trabalho foi
o fato de estar próximo de minha terra e também de levar até ela algo
concreto, como se fosse um presente. Pode ser a poesia de João Cabral de
Melo Neto ou de Carlos Drummond de Andrade, que já traduzi ao persa, além
de outros poetas estrangeiros. Essa experiência, vivida desde Finlândia,
me deixou a convicção de que não é possível ficar o resto da vida
chorando, morrendo de saudade de meu país. Prefiro ser sempre um lutador e
assim luto contra mim mesmo, contra minha tristeza. O que me ajuda a
sobreviver é a poesia de cada país por onde tenho passado. CA – Que papel
desempenhou em sua vida o ICORN, a rede interenacional de cidades de
refúgio, na qual são acolhidos escritores perseguidos de diferentes países
sob a chancela do PEN Internacional, a exemplo de seu caso que, no
momento, se encontra refugiado em México, na Casa Citlatelpet. Como e
porque você recorreu a esse tipo de ajuda? ME – Há um poema, traduzido e publicado em Espanha, em que eu
falo em viver em cinco cidades em um ano. Apesar disso, sempre me vinha
uma imagem de minha casa, de meu país. Ser exilado significa perder a
imagem da casa, do lugar de origem. Quando eu vivia ali, certa vez, como
já lhe disse, viajei e dormi em todas as cidades iranianas. ISso, porém,
era algo diferente, porque eu sempre poderia voltar, a qualquer momento,
para minha casa. Quando deixei o Irã, passei um ano a viver em sete
cidades de três países diferentes. Essas mudanças, sem a possibilidade de
ter uma casa para regressar, um lugar familiar, foi algo muito difícil. Eu
levava comigo a permanetne imagem de minha casa. ICORN, portanto, me
ajudou muito, porque, apesar de ter amigos no PEN de Suécia, no de
Finlândia, no de Espanha etc., verifiquei que poderia usar esse recurso ou
apoio. Tive que optar entre ficar com minha nacionlidade iraniana ou de
pedir asilo politico em algum país. Então, decidi pelo segundo caminho.
Após pedir ajuda ao ICORN, surgiu a acolhida na cidade de México,
precisamente na Casa Citlatelpetl. Isso pasra mim foi maravilhoso, porque,
o primeiro país que publicou minha poesia em formato de livro físico, foi
Espanha. Por isso, logo comecei a aprender o castelhano. CA – Espanha foi,
portanto, para você, uma espécie de “madre editorial”… ME – Perfeito. Isso me estimulou a aprender o castelhano a
partir de 2010, em Espanha. Foi por essa época que encontrei Antonio
Gomoneda, em Granada, um poeta extraoradinário. Então disse para mim
mesmo: por que não falar seu idioma? Foi com ele e por causa dele que
comecei a aprender espanhol. Por essa época descobri que ali, em Espanha,
se ignorava a poesia latino-americana, ou seja, ela não era conhecida como
deveria ser. Inclusive a poesia brasileira. Isso, creio, nascia de uma
certa exacerbação nacionalista. Os espanhóis, são, em grande maioria,
localistas, regionalistas, nacionalistas. Eu lutei e luto contra isso no
Irã e ali, em Espanha, continuei a combater esse sentimento nocivo ao
conhecimento pleno da poesia de todos os lugares do mundo. Daí que quando
me surgiu a possibilidade de asilo em México, proporcionada por ICORN,
decidi vir para a América decidido também a conhecer sua literatura.
CA – E como foi a
acolhida? ME - Uma vez no México, comecei a traduzir poesia. Esse
trabalho se constituiu numa espécie de troca e de aprendizado. Graças à
tradução me foi possível viver a experiência de vida noutro idioma e
noutra cultura. É, de certo modo, viver com as duas experiências: o meu
passado como iraniano e a nova vivência mexicana. CA – Assim, até que
ponto a atual estância em México tem influenciado a sua poesia e inclusive
no domínio da tradução? ME – Essa maneira dual de entender o fenômeno da criação
poética sempre existiu em minha vida. O exemplo mais patente foi a
presença do folklore na cultura persa, que se manifesta totalmente
diferente da tradição literária dali. Isso se nota bem na produção dos
grandes poetas iranianos de todos os tempos. A poesia persa é algo
bastante fechado, enquanto que o folklore se apresenta de forma aberta, ou
seja, como mescla de diferentes culturas do mundo. Em minha região, por
exemplo, vivem pessoas que cultuam as tradições turcas, com suas canções,
suas lendas, suas danças, sua litaeratura etc. Por outro lado, pelo fato de
eu ter vivido por vários países, a minha produção poética está mudando.
Exemplo: ao viver em Granada, próximo de Gomoneda, conheci bem
Federico García Lorca. Assim, estou sempre a receber influências e a
devolvê-las com traduções e novas criações poéticas. Esse tipo de
experiência me oferece a possibilidade de me transformar e de combater
radicalmente a solidão ou a melancolia. A melancolia passa a ser ato
poético. Por isso, sempre estamos predispostos a mudanças, sobretudo na
construção do poema. O trato ou o preenchimento dos espaços vazios, os
silêncios que existem em nós, afetando-nos naquilo que dizemos ou
pretendemos dizer. Essa forma de enfrentar a realidade é,
fundamentalmente, um aprendizado, uma convivência com a melancolia ou a
solidão. Daí, penso que por onde fui passando e vivendo, de certa forma,
absorvi diferentes paisagens, que se transformaram em minhas exclusivas
paisagens interiores, naturalmente opostas a paisagens exteriores que eu
também visito, porém, fora de mim. Por isso, agora, estou a escrever um
livro, no qual cada poema tem o nome de um país latino-americano. Ainda
que sejam diferentes os países, em verdade, todos se unificam num símbolo
de mulher amada, a minha amada. CA – A mulher amada é
uma curiosa recorrência dos poetas. Por falar nesse tema, eu verifico que
a mulher, ainda hoje, é tratada sob forte discriminação não somente no
Irã, mas em outros países árabes e asiáticos. Sei que há precedentes
históricos, como as que justificam as abstrusas castas indianas, porém, de
qualquer sorte, tudo resulta numa odiosa atitude de desigualdade da mulher
em relação ao homem. Qual seu pensamento sobre esse tema tão
polêmico?
ME - Eu recordo
desde criança as lágrimas de minha mãe. Era um tempo de guerra meu pai,
apesar de ser um homem religioso, golpeava minha mãe. Eu recordo a voz de
minha mãe a lamentar-se e a dizer que iria suicidar-se. Guardo comigo a
lembrança do suicídio de muitas mulheres que viviam em minha vila a mesma
situação naqueles tempos de guerra. Há uma cidade em Irã em que as
mulheres se suicidavam tocando fogo no próprio corpo,
queimadas... CA – Imoladas sob a
ação do fogo. ME – Sim. Essa é a situação das mulheres iranianas. No
entanto, no que respeita à discriminação e à desigualdade a situação é
universal. A intensidade pode ser diferente neste ou naquele país, porém,
lamentavelmente, a regra é universal. Esse estado de coisas decorre, a meu
ver, do próprio desequilibrio
da mente, da razão masculina. E não só do homem, mas, também, de seus
equivalentes. Capitalismo é masculino. É um fenômeno masculino. Em meu
país todos os fundamentalismos são masculinos. No entanto, cresce o
movimento contra esses tipos de discriminação e o governo está muito
assustado. CA – Nesse movimento
os ativistas defendem a igualdade da mulher em todos os setores da vida
social? ME – Sim. No entanto, eu, como poeta iraniano exilado, tenho
que lutar contra a propaganda mundial contra o Irã. Essa propaganda
difunde uma coisa nociva contra os iranianos: diz ser oIrã é um deserto,
onde todas as mulheres andam com o rosto coberto, são “coisas” e não seres
humanos; porém, felizmente, não é verdade. Historicamente o Irã teve
formação diferente. Por exemplo, é bastante diferente de Arábia Saudita. A
questão fundamental é outra. Temos no Irã uma cultura diversa, mas aberta
e essa abertura nunca permitiu que os politicos fundamentalistas
impusessem suas regras fechadas e radicais de maneira livre, sem
resistência. Muitas mulheres iranianas defenderam e sofreram violências
por causa dessa luta contra a discriminação. E nós, poetas, estamos sempre
ao lado das mulheres, porque a poesia é feminina. CA – Para terminar,
como você, além de poeta e tradutor, também é um homem que domina a
Informática, em todos os niveis, com interesse forte sobre a chamada
tecnologia da informação, que acha da veiculação da poesia sob o formato
online em lugar do suporte físico do papel? ME – Primeiro, eu preciso dizer que o “corpus” do pensamento
não é o papel. O pensamento depende de nosso corpo, de nossa mente, de
nossa razão. Assim, o
pensamento pode vir pelo ar, das montanhas, do céu ou do computador. Não
importa. O mais importante é
que o pensamento deriva de nossa mente e chegue à mente do leitor. Por
outro lado, eu venho de uma cultura antiga, na qual a publicação que tem o
papel como suporte subrevivia há milenios anteriores. A poesia de Hafiz se
difundiu por séculos sem a necessidade de uso do papel. A máquina de
Gutemberg foi um acontecimento industrial e, ademais, teve e tem algo que
ver com o capitalismo. Não passa de uma espécie de mecanização do
pensamento. Comparar a cultura digital com a cultura difundida por meio do
papel, a meu ver, é apenas uma questão de escolha. O papel pode, até, ter
um significado nostálgico, mas eu prefiro o suporte digital porque é mais
democrático. Dentro do Irã, por exemplo, eu tenho publicado toda minha obra
em formato digital. Assim, eu escrevo para todos e não só para aqueles que
podem comprar livros físicos, em papel. Em contrapartida, pode-se dizer
que os editores objetivam
ganhar dinheiro. O poeta não deve escrever para enriquecer. Eu não escrevo
para ganhar dinheiro. Quem tem dinheiro, via de regra, nem sempre pode
publicar um livro de poesia, isso porque sua existência como autor
corresponde mais à necessidade do mercado editorial. João Cabral de Melo
Neto, um grande poeta, não poderia viver do dinheiro ganho com sua poesia.
Eu mesmo vivi anos trabalhando como programador de computadores. Assim,
entendo que a poesia não é uma mercadoria. Poesia não existe para ser
vendida, mas para ser vivida.
Mohsen
Emadi O
POEMA
A
Reza Alamehzadeh
1 As palavras são o
cemitério das coisas o trote de um
cavalo sobre estas linhas são o som que eu
não ouvia desde a minha infância
durante a minha
adolescência o teu riso
enlanguesceu escrevo como se
peregrinasse à cidade dos
mortos se, por acaso, o
tempo pudesse retroceder ressoariam os
murmúrios de meu pai nos ouvidos deste
texto, o som de uma bala estorvaria o sonho
dessas linhas e um poema de juba
selvagem pediria passagem num quarto
abandonado durante
anos as palavras foram
colocados num plano descolorido da
casa: aqui está a
janela para além da
janela, o pátio ninguém sabe que
pesadelo desperta o poema. às vezes, a janela
com blocos discretos olha a
noiva vizinha por vezes, o
balanço e a bicicleta ou o muro com seus
desenhos inócuos os
contemplam até que cobram
vida do
vizinho só então,
aspirando e expirando coisas
vivas voltam a
dormir
2 Faz anos que os
murmúrios de meu pai perderam-se no
texto do sono e o poema acendeu
três mil velas modelou três mil
barcos de papel e os ofereceu
todos ao mar agora que eu já
arrumei as malas e espero o
primeiro trem para nunca mais
voltar o poema monta a
bicicleta, trêmulo e com
precipitação pedala sobre covas
e poças toca a campainha
de uma porta fixa-se nos
sussurros e soluços temendo que eles
ouçam mas os sussurros
soam tão alto que é impossível
ouvir o apito de um trem Eu ainda estou na
estação E o poema em Khavaran* protege os mortos
daqueles anos passados do olhar dos
guardas
3 Há um
ano o poema deslizou
por cima do alambrado onde os soldados
patrulhavam as colinas de seu
peito roubou teus
lábios tuas
mãos e recriou-te peça por
peça este ano, os
soldados só assistiam: teu corpo foi
roubado há tempo na estação
meu banco é
ocupado por um morto cujo nome o poema
desconhece tampouco
aprenderia o teu balas e sangue
quente encontrariam o
caminho para estas linhas nenhum papel pode
deter esta sangria a estação está
cheia de passageiros mortos os pelotões de
fuzilamento e
cordas não esperaram
nenhum trem de má vontade, os
coveiros tocam as
campainhas de três mil casas rês mil bicicletas
abandonadas estão espalhadas
pelos becos
4 O poema não está
parado frente a um pelotão de
fuzilamento tampouco o pelotão
de fuzilamento no poema, sabe
para onde deve apontar somente aumentam o
preço da água e da luz, do aluguel e das
despesas de funeral eu não posso
comprar cigarros para três mil
mortos porém posso
ressuscitá-los a todos eles eu não quero
forçar o poema a devolvê-los a um
cemitério que deixou de
existir eu só quero
lembrar que todas as
bicicletas abandonadas já estão danificadas
e ninguém voltará
a ouvir a repetição da campainha na
porta os mortos ficarão
na estação e se o poema pode
garantir um bilhete para cada
leitor ser-lhe-á enviado
no primeiro trem que passar em minha
terra é normal três mil
mortos em uma estação é normal três mil
mortos em um trem
5 Nos postos de
fronteira eles prendem
nossas línguas nossas palavras se
deterioram quando cruzam essa
linha eu soltei tuas
mãos fora da estação o apito do trem
apressa minhas palavras as palavras
ocuparam todas as cabines têm pesadelos de
mil anos minhas palavras
são jovens têm trinta anos de
idade porém presas a
este manto manto por
manto foram se
acumulando o amarelo não foi
a cor dos meus sapatos de
colégio tampouco era
vermelha a cor do meu mealheiro nem azul a cor da
minha primeira bicicleta as palavras têm
crescido com as cores da
camisa; eram uma manada de
cavalos fugindo um arco-íris que
arrancarias de teu corpo e com ele
formarias uma grande curva no
ar e cairias na lama
e no barro sob algemas, no
escuro e sob a ordem de fogo
6 Eu não estou em
uma longa fila à espera de pão e
leite estou aqui para
entregar minha língua aquele que cruza a
fronteira perde peso estou aqui para
ser traduzido uma bicicleta
percorre minhas fronteiras por covas e
poças o poema se fixa
nas conjunções e preposições a distância entre
mim e eu me
a-ante-cabe-con-contra mim chove sobre
conjunções e preposições sobre as
relações na
chuva eu me afasto de
ti e, nesta
distância, Khavaran vai se
ampliando
7 Na minha
língua quando todos se
calam de repente nasce
um policial na minha
língua, por trás de cada
bicicleta assustada sentam-se três mil
palavras mortas em minha
língua a gente murmura as
confissões vai vestida de
sussurros pretos é
sepultada em
silêncio minha
língua é
silêncio quem traduzirá meu
silêncio? como vou
atravessar esta fronteira?
(Tradução: Cláudio Aguiar) * Khavaran
é uma localidade a sudeste de Teerã, onde está situado o ex-cemitério
Bahai, para onde enviaram prisioneiros de consciência, mortos em massa em
1988. Foi demolido pelo governo em janeiro de 2009. |

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