Astrid Cabral

"A função da poesia me parece ser a de um diálogo de igual para igual com o leitor, ou com o ouvinte, se oralizada. Uma conversa ao pé do ouvido que mexa com a alma, as raízes do ser."

Entrevista a Cláudio Aguiar  

    A vasta obra de Astrid Cabral desfruta, hoje, de lugar definitivo no cenário das letras brasileiras, circunstância confirmada pela abundância de juízos críticos das mais autorizadas vozes da nossa crítica, tais como Lélia Coelho Frota, Ivan Junqueira, Nogueira Moutinho, Fernando Py, Fábio Lucas, Fausto Cunha, Ledo Ivo, Antonio Carlos Secchin, entre outros.

     A poesia de Astrid Cabral, até agora, tem sido um testemunho coerente de sua própria formação cultural e intelectual, pois nascida na região amazônica deve ter internalizado a grandeza daquele universo e o traduzido nas inúmeras possibilidades de sua construção poética.

     O seu absoluto domínio da expressividade lírica em nenhum momento concorreu para deixar de lado a força telúrica, embora absorvida sob o impacto de profundas experiências vivenciais.

     A assimilação dessa intensa carga poética fez com que o crítico Fausto Cunha chamasse a atenção para a presença de uma certa “fenomenologia” como palavra-chave capaz de permitir ao leitor penetrar no universo poético de Astrid Cabral. Esse processo concorreu para que ela captasse sua própria visão da realidade.

     Foi, ainda, essa rara capacidade de criar a partir de uma perspectiva mutante, que também chamou a atenção do crítico e poeta Ivan Junqueira, levando-o a afirmar que Astrid Cabral “desce ao cerne de si própria e de sua sina elementar, aérea e peregrina”, reconhecendo, ainda, ser  ela, ao mesmo tempo, “telúrica e ascética, lírica e escarninha”.  

     De sua ampla bibliografia destacamos  os seguintes livros de poesia: Ante-Sala, Jaula, Rasos D´Água, Intramuros, Rês Desgarrada, Visgo de Terra, Torna-Viagem e Ponto de Cruz. Escreveu ainda contos e obras para crianças.   

Cláudio Aguiar - A natureza e o significado do ato criador. Quais os limites do poeta diante do mistério insondável da palavra?

Astrid Cabral - O ato criador humano é imitação humílima da grandiosa criatividade divina. Seu significado parece decorrer do universal desejo de eternidade. Vale como estratégia para contornar a precária e provisória condição humana, finitude que aspira ao infinito. Os mistérios são constante desafio à curiosidade, e o homem está sempre empenhado em desvelá-los. A história sempre nos mostra o incessante derrubar de muralhas, a conquista de novos campos de conhecimento através da pesquisa científica, que anda a jato nesta era tecnológica.
A palavra em si, do ponto de vista da ciência, foi analisada e estudada através da lingüística, disciplina que muito esclareceu a complexa estrutura fonética, morfológica, sintática e semântica dos mais variados idiomas.
Já a palavra poética envolve aspectos mais irredutíveis. É desses mistérios diante dos quais nos ajoelhamos. Talvez porque na arte sejamos movidos por perguntas sem resposta e captar o indizível seja o alvo. Na arte o indivíduo não coloca à dissecação o concreto existente, mas se lança em busca de trazer à luz o que apenas em potência existe no abstrato. A meu ver, os limites do poeta são basicamente dois: o código lingüístico da herança social e os recursos pessoais de cada um. È dentro dessas fronteiras que vai trabalhar e produzir.

CA - Testemunha, vivência e contemplação. Ver, viver e deslumbrar-se. Qual o papel do poeta diante do destino humano?

AC - A rigor, todos nós somos testemunhas da vida. Compartilhamos a mesma sina de ver, contemplar e nos emocionar. O poeta se distingue dos demais pelo fato de externar seu testemunho através da palavra escrita, cuja durabilidade será maior desde que se constitua em obra de arte. O dom da palavra o credencia a ser o intérprete de aspirações, frustrações, utopias, a variada gama de sentimentos de sua comunidade, presentes em um dado momento histórico. Seu sucesso estará vinculado a esse compromisso de porta-voz da maioria sem voz. Por outro lado, o poeta também pode sintonizar-se de modo mais abrangente com a complexidade do destino humano universal e atemporal. Tudo vai depender de sua cosmovisão, às vezes focada de preferência na esfera do sagrado, do filosófico e do mítico. Portanto há os poetas que, presos à realidade circundante, celebram o presente, evocam o passado, imaginam o futuro. Há os que protestam diante da realidade adversa, e os que enveredam pelos caminhos metafísicos apalpando as trevas do desconhecido. Várias são as propostas e trajetórias, mas todos cumprem o papel de expressar verbalmente a perplexidade pessoal diante do destino.

CA - Tomar o poeta como um ente fora da órbita humana seria divinizá-lo. Poderá a poeta falar como se fora um demiurgo? Seria essa a função da poesia?

 AC - Já se foi o tempo em que o poeta brasileiro gozava de certo prestígio social. Hoje ele freqüenta fraternidades quase clandestinas, sem maior repercussão na mídia. Vive à sombra. A má qualidade do ensino afastou o público da leitura, favorecendo o sucesso da música popular, acessível inclusive aos analfabetos. Nos encontros sociais o lazer foi substituído por espetáculos esfuziantes de som estridente e marcadamente visuais. Ainda há lugares no mundo em que o poeta guarda certa aura. Quando estive no Irã, há mais de 30 anos, surpreendeu-me o quanto os poetas eram reverenciados. Um amigo meu, voltando do festival de Medellín relatou a glória de imensa multidão delirando com a apresentação de poemas, carregando poetas nos ombros. No meu caso, eu não me arvoraria a falar como demiurgo. Isso implicaria um pedestal, um sentimento de superioridade inadequada e arrogante. O tom do discurso, da retórica em alta escala, não condiz com a minha dicção. Prefiro o coloquial, não o escrachado, mas o elegante, sem pedantismo. Também penso na poesia como forma de arte, não como instrumento de persuasão e demagogia. Palanque, só para político. A função da poesia me parece ser a de um diálogo de igual para igual com o leitor, ou com o ouvinte, se oralizada. Uma conversa ao pé do ouvido que mexa com a alma, as raízes do ser.

CA - A tradução da poesia, diante da Torre de Babel de nossos dias, adultera ou enriquece a força da expressão poética original?

AC - As duas coisas podem acontecer, dependendo da qualidade da tradução. A boa é capaz de enriquecer o texto original, da mesma maneira que a má vai comprometê-lo. A tradução é também uma forma de criação artística, só que em cima de trilhas já traçadas.

CA - Qual o lugar da técnica no ofício poético?

AC - Creio ser o da iniciação, o da indispensável aprendizagem e disciplina. O domínio da linguagem bem como dos recursos melódicos e imagéticos torna-se fundamental no enriquecimento da expressão. O importante é o uso ponderado deles, que auxiliam, mas não bastam. Já em demasia arriscam amordaçar a emoção e gerar um poema espartilhado, resseco pelo formalismo excessivo.

CA - Sempre se diz que o mercado para livros de poesia, no Brasil, ainda é escasso. A seu ver, como se poderia minimizar esse problema, já que a poesia faz parte da vida diária de todos os homens?

 AC - Penso que o problema da falta de interesse pela publicação de poesia nas grandes editoras deriva da dificuldade de comercialização devido à falta de leitores. É um investimento sem retorno financeiro. Poesia não vende. Ultimamente pequenas editoras têm se encarregado disso, através de tiragens limitadas, que só por sorte chegam a mais de uma edição. E aí, eu vou ter que discordar de sua afirmativa de que a poesia faz parte da vida diária de todos os homens. A televisão, sim. O jornal, sim. O esporte, sim. A poesia não faz parte. Só uma minoria se alimenta dela como artigo de primeira necessidade. Outros fazem uso esporádico. A grande maioria a ignora solenemente. A poesia, como a oração, não faz mais parte dos hábitos contemporâneos. Enquanto que a ficção leva os leitores para o mundo da evasão, da fuga, do entretenimento, podendo ser transposta para filmes e telenovelas, a poesia leva-os à reflexão, ao aprofundamento emocional, à pausa contemplativa em busca da possível verdade. Enfim, a poesia interioriza, perturba, incomoda. No corre-corre da vida moderna, ninguém está a fim de interromper o fluxo mecânico e vertiginoso da sobrevivência empatando tempo com divagações gratuitas. A meu ver isso poderia ser minimizado se a poesia estivesse atrelada às coisas que todos consomem. Poesia nos programas de televisão. Poesia nos jornais. Poesia nos cartazes, nas propagandas, nas embalagens etc. Nos EEUU vi poesia viajando no espaço interior e exterior dos ônibus, embrulhando sacolas de supermercado.

 CA - Quais os efeitos produzidos pelas novas tecnologias de comunicação visual em relação à poesia? Há oposição entre os novos meios e os tradicionais?

 AC - Considero a internet de inestimável ajuda na divulgação da poesia. Ela vem suprindo o vácuo enorme criado pela omissão dos meios tradicionais, a falta de espaço em jornais e editoras. A rede gerou enorme acesso a contatos virtuais entre poetas geograficamente afastados, criou oportunidades várias. Há sites que são verdadeiras enciclopédias de poesia. Graças a um deles tenho poemas publicados em três antologias fora do Brasil. Os novos meios primam por serem mais dinâmicos e democráticos, além de extremamente rápidos. Certa vez mandei, pela manhã, oito poemas para Sirena, revista de uma universidade americana, e à tardinha recebi convite para participar de semana internacional de poesia na Filadélfia. Pelos meios postais teria sido assunto para rolar meses. Por outro lado, essa facilidade ao alcance de todos engana muita gente desprovida de autocrítica, ávida de aparecer, apressada em circular o que ainda não decantou. Poesia não pode ser produção em massa. Requer concentração, linguagem específica, nada a ver com o informativo jornalístico impessoal; requer leitura e cultura, além do simples manuseio eletrônico. Poetas de gerações mais velhas costumam ser analfabetos de computador e por isso se auto-excluem da circulação, o que é lamentável.

 CA - Qual o futuro ou a perspectiva da poesia brasileira em nosso tempo?

 AC - Não ouso bancar a profetisa arriscando previsões. Sinto que o seu vigor crescerá se for devidamente valorizada, o que vai depender dos fundamentos educacionais adotados. No entanto, cada dia que passa a política educacional confere prioridade a matérias científicas, a arte sempre relegada a segundo plano. De fato, até certo ponto o artista é autônomo, livre para produzir sua obra, independente das circunstâncias, mas sendo um ser social não prescinde de estímulos práticos de ordem financeira. Não se alimenta de brisas. A escolaridade básica é indispensável à criação de um público de leitores, ouvintes e espectadores, capaz de sustentar o desenvolvimento artístico. Ela constitui requisito indispensável para o surgimento de um sistema cultural atuante. Algo que transcenda o futebol, o carnaval e outras festas populares. Infelizmente, neste país, de tantas desigualdades criminosas como o nosso, quando se fala em fome zero, ninguém se mobiliza para atacar também a fome que habita fora das barrigas, a superior aspiração da vida humana em alto nível e plenitude.



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