CA - Quando você começou a estudar como surgiu, concretamente, seu interesse pela astronomia?
RM - Por essa época de colégio, eu gostava muito de ler, embora a maioria dos livros de meu pai fossem de medicina. Entre os livros de literatura que primeiro li, recordo até hoje Cartas, de Machado de Assis e Os Sertões, de Euclides da Cunha. Havia outro livro que me lembro muito: era a história do Chalaça, em que o áulico luso-brasileiro Francisco Gomes da Silva relatava as conquistas amorosas de D. Pedro I. Outra obra foi
Livro de San Michele (1929), escrito pelo médico sueco Axel Munthe. No início dos anos 40 minha mãe comprou o laboratório farmacêutico Áquila, que teve grande influência na minha carreira. Eu gostava de ir lá, ver as balanças e aqueles equipamentos de química. Também comecei a me interessar pela eletrônica. Queria construir rádios; cheguei a montar um rádio de galena. Comprava revistas técnicas, como Antena e acessórios eletrônicos para fabricar radiotransmissor, pois queria ser radioamador. Depois, na adolescência, quando entrei no Colégio Andrews, a minha mania por eletrônica encontrou resistência em casa. Diziam: "Isso é loucura. Você vai ser o quê? Pintor? Artista não consegue ganhar a vida. Você vai ser técnico em rádio? Vai viver consertando rádios?
CA - Após superar esses obstáculos, terminar o secundário e entrar na universidade, como conseguiu ser nomeado para o seu primeiro emprego de astrônomo?
RM - Em 1956, ainda anão havia concluído a faculdade, quando surgiram umas vagas de astrônomo auxiliar no Observatório Nacional. Após uma
prova interna, eu, o Jair e Mário Rodrigues, todos colegas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, fomos indicados para a nomeação. Apesar de indicado pelo diretor Lélio Gama, não conseguia ser nomeado. Um amigo aconselhou-me a falar com Josué Montello, na época trabalhando na Casa Civil do Palácio do Catete. Josué solicitou o processo de minha nomeação ao Ministério da Educação e Saúde e mandou junto um bilhetinho para o presidente Juscelino, cujo original me foi dado posteriormente pelo próprio Josué. Dizia: "Meu caro Presidente. Este pedido de nomeação de um astrônomo interino sou eu que lhe faço, para ajudar um jovem de dezoito anos que é, no presente, uma das maiores vocações científicas do Brasil. Aos 20 anos, os títulos dele são os da lista em anexo. Vamos amparar esta vocação. O rapaz é pobre - pobre como nós fomos na idade dele. É um pedido que lhe faz o Josué Montello." No dia seguinte Montello me contou: Ronaldo, o único pedido de nomeação que o Juscelino assinou foi o seu." Assim, entrei para o Observatório Nacional, comecei um estudo minucioso da astronomia esférica e fundamental, inicialmente com base em três livros: Astronomie, de Luc Picard, Astronomie Stellaire, de Jean Delhaye, e Astronomie, de André Danjon, com a orientação de Muniz Barreto.
CA - Quando começaram seus contatos com astrônomos e entidades européias?
RM - Em 1961, participei do Simpósio sobre Estrelas Duplas Visuais, em Berkeley, onde conheci pessoalmente Sylvan Arend e vários outros astrônomos com quem mantinha correspondência. No ano seguinte ocorreu o Simpósio Internacional de Astrofísica de Liège, na Bélgica, em que tive uma das surpresas agradáveis de toda minha carreira. Fui apresentar trabalhos e esperava voltar imediatamente para o Brasil. Terminado o simpósio, o Arend aproximou-se de mim e disse: "Você vai ficar conosco. Já falei com o diretor do Observatório, que concordou. A gente arranja um lugar para você dormir. Lá tem um quarto. Você pode ficar três meses trabalhando conosco, vai aprender muita coisa". Não fiquei todo esse tempo, mas apenas três semanas por causa das limitações burocráticas brasileiras. Quando voltei para o Brasil trouxe para o Observatório Nacional a tecnologia de redução de chapas fotográficas, assim como novos métodos para cálculo de órbita de estrelas duplas. Até aquela época, as observações fotográficas de cometas e asteróides, assim como as medidas de estrelas duplas, não eram usadas para determinar as suas respectivas órbitas.
CA - Como conciliar as formas tradicionais de estudo com as constantes inovações tecnológicas capazes de influenciar o estudo da astronomia?
RM - Durante minha carreira presenciei várias revoluções tecnológicas, tanto no campo observacional como nos processos de cálculo. Uma das principais foi a introdução dos computadores na astronomia. Em 1962, quando comecei a estudar as estrelas duplas no Departamento de Astronomia e Mecânica Celeste do Observatório Real da Bélgica, nós usávamos uma máquina de calcular manual - uma Brunswick -, que nem mesmo era uma máquina elétrica, como aquela que utilizávamos no Observatório Nacional. Quando voltei à Bélgica, em 1963, participei de um curso para introdução dos computadores nos cálculos de astronomia. Hoje os microcomputadores são máquinas onipresentes em qualquer observatório astronômico. Eles permitem até que um astrônomo no Brasil controle um telescópio situado no Chile ou nos Estados Unidos, enviando comandos pela Internet e vendo na tela do computador as imagens captadas pelo telescópio. O telescópio espacial Hubble, de que tanto se fala hoje em dia, é o resultado de duas revoluções tecnológicas ocorridas na década de 1960: o desenvolvimento da astronáutica, a ciência das viagens espaciais e o progresso da microeletrônica, da eletrônica do estado sólido.
CA - Qual o caminho que você aconselharia a quem desejasse seguir a carreira de astrônomo?
RM - Hoje o melhor caminho para quem deseja ser astrônomo é fazer o curso da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Observatório Valongo. É a melhor formação. Lá se aprende matemática e física, se tem uma visão mais completa da astronomia e as pesquisas ali se aprende muito cedo. É claro que existem outros caminhos. A pessoa pode cursar matemática e depois seguir astrometria, pode fazer física e depois optar por astrofísica. Mesmo assim, sempre ficarão lacunas na formação. Ao passo que aqueles que fazem o curso geral, como o do Valongo, ficam com uma visão global da astronomia, muito importante para quem deseja inovar, criar novos processos. Para uma boa formação há necessidade de uma visão histórica, de como, por exemplo, foi a astronomia, que processos eram utilizados. Sem isso, às vezes, a pessoa pensa que está criando alguma coisa, quando as outras pessoas já fizeram aquilo. RM - Apesar de tudo, os jovens que atualmente ingressam no curso de formação de astrônomos podem ter a certeza de que vão participar de uma era
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de ouro de descobertas e inovações, com a qual os astrônomos do passado só podiam sonhar. Não importa se o Brasil é um País de Terceiro Mundo, onde se dá pouco apoio à pesquisa científica pura. Por meios de acordos de cooperação internacionais, os astrônomos brasileiros têm trabalhado com instrumentos de última geração e participado de pesquisas de ponta com seus colegas do Primeiro Mundo. Nos últimos vinte anos, os astrônomos do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, para citar só um exemplo, participaram de pesquisas envolvendo o telescópio espacial Hubble, da NASA, o gigantesco radiotelescópio de Arecibo, em Porto Rico, e os os telescópios de última geração dos observatórios europeus situados nos Andes chilenos. Qualquer jovem brasileiro que sonhe em ser astrônomo neste início de século XXI pode ter certeza de que vai estar no meio de toda essa revolução científica, trabalhando ativamente na solução dos mistérios mais profundos do Universo.
Lei mais sobre a trajetória de Ronaldo Mourão:
Em julho de 1967, obteve o título de doutor pela Universidade de Paris com menção Très Honorables. Em dezembro desse ano voltou para o Brasil, reassumindo suas funções como astrônomo no Observatório Nacional e de Pesquisador no Conselho Nacional de Pesquisa. Em março do ano seguinte foi nomeado Astrônomo-Chefe da Divisão de Equatoriais.
Em 1970 foi convidado a escrever para o Jornal do Brasil, um dos principais periódicos brasileiros. Além de artigos normais sobre pesquisas astronômicas, iniciou uma série mensal intitulada O Céu do Mês, que foi publicada em diversos jornais do Brasil, dentre eles Correio do Povo, de Porto Alegre, e Tribuna da Bahia, de Salvador. No mesmo ano saiu publicado o seu livro Atlas Celeste, onde apresenta, além de inúmeras cartas celestes, uma detalhada descrição do céu visível nas latitudes brasileiras; publicou também um planisfério móvel intitulado Cartas Celestes.
Em 1972, passou a colaborar, também a convite, em O Globo, no qual manteve uma coluna sobre o aspecto mensal do céu brasileiro até 1976. Elaborou todos os verbetes sobre Astronomia e Astronáutica do Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1975 e 1986) de Aurélio Buarque de Holanda. Coordenou os setores de Matemática e Astronomia da Enciclopédia Mirador Internacional, publicada em 1975 pela Encyclopaedia Britannica do Brasil. Nessa obra, além dos inúmeros verbetes monográficos sobre Astronomia, redigiu e desenhou uma uranografia com mais de vinte e seis pranchas.
Em 1977, produziu a série Céu do Brasil, programas radiofônicos produzidos para o Projeto Minerva, onde associa fenômenos e conceitos astronômicos, poesia, folclore e música popular brasileira. Em 1978, passou a publicar no Jornal do Brasil uma coluna semanal, intitulada Astronomia e Astronáutica, onde divulga os mais recentes e importantes resultados sobre Astrofísica, Cosmologia, Relatividade, Física e Astronáutica, na atualidade e no futuro. Obteve em 1978, pelo conjunto de seus trabalhos, o Prêmio José Reis de divulgação científica, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
As suas principais contribuições astronômicas foram efetuadas no campo das estrelas duplas, asteróides, cometas e estudos das técnicas de astrometria fotográfica. Participou e apresentou trabalhos em diversas reuniões científicas nacionais e internacionais. Possui mais de uma centena de artigos de pesquisas publicados em diversas revistas internacionais especializadas em Astronomia e mais de mil ensaios publicados em livros, revistas e jornais. Descobriu em 1971 uma estrela companheira invisível da estrela dupla visual Aitken 14. Tal descoberta foi confirmada pelo astrônomo francês P.Baize e pelo astrônomo austríaco J. Hoppmann, que determinou sua órbita provisória. Em missões no Observatório Europeu Austral, em La Silla, no Chile, descobriu, em colaboração com o astrônomo belga Henri Debehogne, diversos asteróides. O asteróide 2590 descoberto em 22 de maio de 1980 foi batizado com o nome Mourão. Segundo o registro feito em 2 de julho de 1985, no Minor Planet Circular, o nome desse asteróide é uma homenagem ao astrônomo R. R. de Freitas Mourão, conhecido por seu trabalho sobre estrelas duplas, pequenos planetas e cometas. Tem participado extensivamente do programa de descoberta e observação de pequenos planetas no ESO - European Southern Observatory e é autor de diversos livros de divulgação da astronomia. Liderou o processo de fundação, no Brasil, do Museu de Astronomia.
Primeiro contemplado com o Prêmio José Reis da divulgação científica, instituído em 1977 pelo CNPq. A comissão que conferiu o prêmio por unanimidade tinha como presidente o Prof. Dr. Aristides Pacheco Leão, Presidente da Academia Brasileira de Ciência. Em 1988, viu o seu Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica, com cerca de 20 mil verbetes, único em seu gênero no mundo, editado pela Nova Fronteira. Neste mesmo ano, passou a assinar a coluna Telescópio, na revista Superinteressante. Convidado em 1991 para editor-executivo da revista Novaciência, deixou a Superinteressante para se dedicar à tarefa de editor. Desde maio de 1992 é cronista de astronomia da TVE, no programa Curto-Circuito de Victor Paranhos e João Luiz Albuquerque. Suas atividades como astrônomo, escritor e ensaista têm estimulado músicos, poetas e escritores. Entre os músicos vale citar os exemplos de Almeida Prado, nas suas Cartas Celestes e o de Maria Emília Mendonça, em suas Viagens Interplanetárias, Os anéis de Urano. Na poesia devemos citar o poema O Céu, de Carlos Drummond de Andrade e Anti-Universo, de Fernando Py. Pertence a inúmeras associações astronômicas internacionais, dentre elas a Royal Astronomical Society (Londres), Société Astronomique de France (Paris), Società Astronomica Italiana, etc... É membro da Comissão de Estrelas Duplas, Asteróides e Cometas, assim como de História da Astronomia da União Astronômica Internacional. Idealizou e fundou, em março de 1984, o Museu de Astronomia e Ciências Afins, do qual foi seu primeiro diretor até abril de l989. Em maio de 1994 foi eleito membro honorário do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Em janeiro de 1995, foi eleito membro-titular do PEN Clube doBrasil, pelo conjunto de seus ensaios científicos literários.
Para maiores informações sobre o Astrônomo Ronaldo Mourão acesse: http://www.ronaldomourao.com
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