"A tradução é uma espécie de continuação da análise e da crítica literária de uma maneira aplicada e, ao mesmo tempo, uma prática estética criativa".
Entrevista a Cláudio Aguiar
Berthold Zilly, professor da Universidade Livre de Berlin e da Universidade de Bremen, ficou conhecido no Brasil por ter traduzido, pela primeira vez, Os Sertões, de Euclides da Cunha, para o alemão, publicado em 1994. No entanto, o trabalho de Zilly não se limitou apenas a uma simples tradução. Levou quase uma década para ser concluído, após ter andado pelos sertões nordestinos, ouvido depoimentos das mais diferentes origens e coligido milhares de notas, referências, comentários ou observações lingüísticas relativas à obra euclidiana e, também, comendo carne de bode e tomando umbuzada com os sertanejos.
Nos últimos anos tem recebido homenagens de várias instituições acadêmicas e culturais. A Presidência da República concedeu-lhe honrosa distinção ao outorgar-lhe a medalha Cruzeiro do Sul e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 2004, o elegeu membro correspondente da Alemanha. Em novembro de 2006 recebeu a Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura, participando da 52ª. Feira do Livro de Porto Alegre, onde proferiu palestra num encontro de tradutores brasileiros e alemães. Também participou de um seminário do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) e proferiu palestras no Rio de Janeiro.
Pertence ao PEN Clube da Alemanha e, nessa condição, fez uma visita de cortesia à nossa sede por ocasião do "Encontro com o Escritor", no dia 29/11, que contou com a participação do Acadêmico Sérgio Paulo Rouanet.
Cláudio Aguiar - Como e quando nasceu seu interesse pelo Brasil?
Berthold Zilly - Curiosamente não nasceu nem no Brasil nem na Alemanha. Nasceu na França. Eu era estudante... Olha, já se vão 40 anos! Eu poderia ter comemorado os 40 anos de Brasil. Comemorado, não só meu interesse, mas meu amor pelo Brasil!. Isso ocorreu em começos de 1966, na Universidade de Caen, na Normandia. Eu estudava Letras Românicas (Línguas e Literaturas Neo-latinas) e Literatura Alemã. Ali conheci brasileiros e comecei a conviver com eles. Um professor, leitor brasileiro daquela universidade, costumava passar filmes brasileiros seguidos de palestras sobre a cultura brasileira etc. Foi numa dessas sessões que vi, pela primeira vez, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, a quem mais tarde cheguei a conhecer pessoalmente. Aquela história revelava tantas desigualdades sociais, tantas injustiças gritantes, que provocavam indignação e solidariedade em qualquer pessoa sensível que entrasse em contato com a estrutura da sociedade brasileira. Fiquei profundamente impressionado com essa situação social, mas também com a poeticidade do seu retrato.
CA - Como chegou a conhecer Os Sertões?
BZ - Creio que tudo começou com Vidas Secas, o filme de Nelson Pereira dos Santos, e o livro do Graciliano Ramos que li logo depois. Então, vieram o Nordeste, a miséria, a seca... Quais as causas dessas misérias, dessas injustiças? A injusta distribuição da terra, a falta de estado de direito, a falta de respeito para com a dignidade humana, principalmente em relação às classes subalternas, os trabalhadores do campo, o pequeno camponês; a violência geralmente usada pelos de cima contra os debaixo. Claro, também, a violência entre os debaixo. Há uma contra-violência tradicional, como, por exemplo, o cangaço, embora não seja nada revolucionário. Foi por essa época, em 1967 ou 1968, que li Cangaceiros e Fanáticos, de Rui Faço, e me interessei por esses fenômenos, que são conseqüências da injustiça social, da miséria etc. Em 1968 cheguei ao Brasil pela primeira vez, conhecendo o Nordeste. Então, de tudo isso, algo me tocou profundamente: o sertão que me parecia a mais brasileira de todas as paisagens. Ela provoca um efeito especial no viajante ou observador. Talvez por causa da infinitude do olhar ao horizonte, aquele panorama vastíssimo, o céu muito grande e intenso, o contraste da natureza, conforme o lugar e a estação do ano, entre queimado e verde, e também entre pobres e ricos. Por fim, por causa da história, as lutas sociais, entre a tragicidade da vida, a luta do homem contra o meio natural e até do homem contra o homem etc. Tudo isso me chamou para o sertão... Os Sertões... Foram os contatos físicos, sensoriais, mas também, por assim dizer, metafísicos com essa realidade e as leituras sobre ela que me levaram a Euclides da Cunha.
CA - Que técnicas e recursos você utilizou para realizar a tradução de Os Sertões, considerado um livro difícil, de estilo empolado, com uma linguagem originalíssima?
BZ -A rigor, a minha condição de ser filólogo e o que na Alemanha se costuma chamar de Literaturwissenschaftler, isto é um cientista da iteratura, deve ter concorrido bastante para que eu enfrentasse a tarefa. Não me considero um tradutor profissional, pois me falta tempo para isso, mas acho que traduzir faz parte do meu trabalho como crítico e professor de literatura. A tradução, para mim, é a aplicação da análise de texto, de tudo o que sei sobre poética e retórica, sobre teoria e história literária e lingüística e de vários outros conhecimentos e técnicas de pesquisa, dependendo da temática do livro a ser traduzido, história, religião, sociologia, até geologia, como no caso de Euclides. Tudo que aprendi na minha condição de professor de literatura serviu para a prática tradutória, que se divide necessariamente em dois passos, embora estes possam ser eventualmente quase simultâneos: análise do texto de partida, e transformação do resultado desta análise em nova forma estética, na língua de chegada. Na análise do texto de partida, do original, examino primeiro a dimensão paradigmática: porque o autor escolheu tal e tal palavra dentro do seu campo semântico, dentro de um certo número de alternativas? Será que não poderia ter escolhido outra para expressar - quase - a mesma intenção referencial, estética, sonora, afetiva? O texto bem-sucedido se caracteriza justamente pela impressão de que cada palavra foi escolhida a dedo, que está no seu devido lugar com absoluta necessidade. Depois, é preciso ver a dimensão sintagmática, ou seja, ver a concatenação, a conexão entre as palavras, o por quê da escolha de determinados esquemas sintáticos, em vez de alternativas, teoricamente também possíveis. Também preciso ver os recursos estilísticos, as metáforas, as alegorias, principalmente o que caracteriza mais a linguagem poética, a dimensão fônica, sonora, repetições de palavras, sílabas, sons, aliterações, rimas, o ritmo etc. Quer dizer, tudo isso é analisado de modo consciente e, às vezes, de modo inconsciente, intuitivo. A tradução, quando ela dá certo, não é apenas a reprodução mais ou menos imperfeita de um texto original, mas também uma interpretação dele, um comentário contínuo, capaz de jogar nova luz sobre o original. Se, por um lado, a tradução é uma imitação do original, ao mesmo tempo, por outro, é uma interpretação do original proveitosa também para o conhecedor da língua de partida. E ela é uma obra de arte autônoma, capaz até de existir ao lado do original, à mesma altura, de igual para igual, pode existir até sem o original, enriquecendo um outro contexto e outra tradição cultural. O caso de Os Sertões, um texto extremamente erudito, que lança mão de uma parafernália de palavras, nomes, recursos estilísticos e sintáticos não acessíveis até para muitos brasileiros, impôs naturalmente uma pesquisa exaustiva para permitir a análise do texto e a busca de uma forma estética adequada na língua alemã que, idealmente, produzisse aproximadamente a mesma impressão no leitor alemão que tem o leitor brasileiro. Isso foi bastante demorado e dispendioso para mim. A tradução é uma espécie de continuação da análise e da crítica literária de uma maneira aplicada e, ao mesmo tempo, uma prática estética criativa.
CA - Já que você pertence ao PEN Clube da Alemanha, qual a importância de uma associação internacional de escritores como é o caso do PEN Internacional fundado em Londres há 80 anos?
BZ - Acho notável que o PEN Clube Alemão tenha em suas fileiras, além de escritores, poetas, dramaturgos, críticos literários, artistas da palavra, também pessoas mediadoras ou intérpretes da palavra escrita, ou seja, como diria Haroldo de Campos: os transcriadores, que são os tradutores. A missão do PEN Clube é importantíssima. Claro, ele tem muitas funções, mas no momento me parece que duas são particularmente importantes: defender a literatura e a liberdade de expressão. Essas ações incluem naturalmente os interesses práticos, econômicos e simbólicos daqueles que escrevem. Quer dizer, o PEN Clube deve marcar presença na opinião pública, nos mais diferentes campos da mídia moderna. São muitos os temas, como, por exemplo, os direitos autorais, contratuais, assuntos jurídicos etc, a defesa da categoria num mundo cujos meios de comunicação se transformam com incrível rapidez. Uma outra importante missão é a solidariedade: apoiar colegas ameaçados ou perseguidos em qualquer parte do mundo. Isso ocorre menos na Alemanha ou Europa, embora no sudeste - antiga Iugoslávia, Turquia etc - exista escritores perseguidos, também na Rússia e na Belorrússia. O maior número de casos de atentados e crimes contra a liberdade de expressão ocorre em vários países asiáticos, africanos e árabes. Creio que a concessão do Prêmio Nobel deste ano ao Pamuk se deve, de certo modo, à pressão da opinião pública. Então, o PEN Clube Alemão é muito ativo quando se trata de defender a liberdade de expressão e da imprensa, das artes, da literatura contra qualquer repressão estatal e de outra natureza.